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Comentário Geral sobre os direitos da criança em ambiente digital

26 mar 2021

O Comité dos Direitos da Criança, reunido na sua 86.ª sessão, adotou no passado dia 2 de março o seu Comentário Geral n.º 25, relativo aos direitos da criança em ambiente digital.

Este Comentário Geral tem como objetivo explicar a forma como o Comité entende que os Estados Partes deverão aplicar a Convenção sobre os Direitos da Criança no que respeita ao ambiente digital e fornecer orientações sobre as medidas que deverão ser adotadas para assegurar o pleno cumprimento das obrigações impostas por esta Convenção e seus protocolos facultativos à luz das oportunidades, riscos e desafios que se colocam à promoção e proteção de todos os direitos das crianças em tal ambiente. O documento surge acompanhado de uma detalhada nota explicativa para auxiliar os Estados Partes e de um poster destinado a informar as crianças dos seus direitos neste contexto.

Para além da interpretação das obrigações neste domínio à luz dos princípios fundamentais da Convenção (não discriminação, interesse superior da criança, direito da criança à vida, sobrevivência e desenvolvimento e respeito pelas opiniões da criança), o Comité destaca a importância de respeitar as capacidades em evolução da criança e recomenda uma série de medidas nos domínios da legislação, integração explícita das questões do digital nas políticas e estratégias nacionais relativas aos direitos da criança, coordenação, afetação de recursos, recolha de dados e pesquisa, monitorização independente, difusão de informação, sensibilização e formação, cooperação com a sociedade civil, relações com o setor privado, publicidade e marketing e acesso à justiça e a vias de recurso. No domínio dos direitos e liberdades civis, o Comité fornece diretrizes em matéria de acesso à informação, liberdades de expressão, pensamento, consciência e religião, associação e reunião pacífica, direito à privacidade, registo civil e direito à identidade. O Comentário Geral inclui ainda capítulos especificamente dedicados às questões da violência contra as crianças, ambiente familiar e cuidados alternativos, crianças com deficiência, saúde e bem-estar, educação, lazer e atividades culturais e medidas especiais de proteção contra a exploração económica e sexual e nas áreas da administração da justiça de crianças e da proteção de crianças em conflitos armados, migrantes e em situações de vulnerabilidade.

O Comité recomenda que os Estados Partes aproveitem todas as oportunidades oferecidas pelos meios digitais para fomentar a promoção e proteção dos direitos da criança, mas também que protejam as crianças dos riscos que tais meios comportam, nomeadamente conteúdos violentos e de natureza sexual, ciberagressão e perseguição, jogo, exploração e abuso, sexual e de outra natureza, promoção do suicídio ou de atividades que comportem risco de vida, nomeadamente praticadas por grupos de criminosos organizados. Lembra que as crises, como pandemias, podem aumentar o risco de violência online, dado que as crianças passam mais tempo nas plataformas virtuais. Recomenda a adoção de medidas legislativas para garantir a proteção das crianças contra bens (eg. armas ou drogas) ou serviços (eg. jogos) perigosos e a utilização de sistemas robustos de verificação de idade para impedir o acesso das crianças aos mesmos. Deverão ser aplicadas providências adequadas para proteger as crianças dos crimes ocorridos em ambiente digital, como fraude e roubo de identidade, e ser afetos recursos suficientes para assegurar que tais crimes são investigados e objeto de ação penal. Os Estados Partes deverão ainda exigir a aplicação de rigorosas normas de cibersegurança, privacidade e segurança personalizada nos serviços e produtos digitais utilizados por crianças, a fim de minimizar o risco da ocorrência de tais crimes.

No caso de crianças envolvidas na prática de atos qualificados como crime com recurso a meios digitais, o Comité recomenda que, sempre que possível, sejam seguidas abordagens preventivas e utilizadas alternativas aos meios de justiça penal. O material de cariz sexual criado pelas próprias crianças e na sua posse ou partilhado com consentimento, unicamente para uso pessoal, não deve ser criminalizado. O Comité considera que quando a digitalização dos trâmites processuais resulta na ausência de contactos pessoais com as crianças, tal pode ter um impacto negativo nas medidas de reabilitação e reparação baseadas no desenvolvimento de relações com a criança, devendo os Estados Partes nestes casos, assim como nos de crianças privadas de liberdade, assegurar o estabelecimento de contactos pessoais a fim de facilitar a interação das crianças com os tribunais e a sua reabilitação.

O Comité considera também que a utilização de dispositivos digitais não deve substituir as interações pessoais entre as crianças ou entre estas e os seus pais ou cuidadores, devendo os Estados Partes prestar especial atenção aos efeitos da tecnologia nos primeiros anos de vida, “quando a plasticidade cerebral é máxima e o ambiente social, em particular as relações com pais e cuidadores, é crucial para definir o desenvolvimento cognitivo, emocional e social da criança”. Na ponderação do interesse superior da criança, o Comité afirma que deverão ser tidos em conta todos os direitos da criança, incluindo os seus direitos de procurar, receber e partilhar informação, a beneficiar de proteção e a que as suas opiniões sejam devidamente consideradas, garantindo-se transparência relativamente ao processo de avaliação e critérios aplicados. Os Estados Partes deverão também assegurar-se, nomeadamente, de que os mandatos das instituições nacionais de direitos humanos e outras instituições independentes competentes abrangem a questão dos direitos da criança em ambiente digital.

O Comité lembra os especiais desafios que as crianças enfrentam no acesso à justiça relativamente a atos praticados em ambiente digital e recomenda que sejam criados e amplamente divulgados mecanismos eficazes, de natureza judicial ou outra, aos quais as crianças possam recorrer em caso de violação dos seus direitos neste âmbito, os quais deverão ser gratuitos, seguros, confidenciais, úteis, adaptados a crianças e acessíveis. Devem também ser estabelecidas, coordenadas e regularmente avaliadas estruturas para o encaminhamento de tais casos, garantindo-se a prestação de apoio efetivo às crianças vítimas, incluindo a respetiva identificação, tratamento e seguimento, bem como a reparação dos danos sofridos, e evitando a vitimização secundária. Os Estados Partes devem ainda estudar as formas como a utilização das tecnologias digitais pode facilitar ou dificultar a investigação e o exercício da ação penal no caso de crimes contra crianças e tomar todas as medidas de prevenção e repressão necessárias, nomeadamente em cooperação com parceiros internacionais. As crianças deverão ser informadas dos seus direitos e dos mecanismos, serviços e vias de recurso à sua disposição num formato e linguagem adaptados às respetivas necessidades. Deve ainda ser apoiada a criação de conteúdos digitais adaptados às crianças de várias idades, assim garantindo o seu acesso a, nomeadamente, informação detida por organismos públicos acerca de cultura, desporto, arte, saúde, assuntos civis e políticos e direitos da criança. Quaisquer restrições à liberdade de expressão das crianças em ambiente digital, como filtros, deverão ser legais, necessários e proporcionais, devendo a respetiva justificação ser transparente e comunicada às crianças numa linguagem adaptada à respetiva idade.

O Comentário Geral destaca a importância de assegurar que a formação dos profissionais que trabalham com e para crianças e setor privado, incluindo indústrias tecnológicas, aborda o impacto do ambiente digital sobre os direitos da criança, o exercício dos direitos da criança neste ambiente e a forma como as crianças acedem às tecnologias e as utilizam, bem como a aplicação das normas internacionais de direitos humanos neste contexto. Os Estados Partes deverão exigir que o setor privado atue com a devida diligência relativamente aos direitos da criança, leve a cabo avaliações de impacto a este nível e divulgue publicamente os respetivos resultados. O Comité considera que deve ser proibida por lei a definição de perfis de crianças de qualquer idade para fins comerciais com base no registo digital das suas características reais ou presumidas.

É ainda recomendado que os dados pessoais de crianças só possam ser acedidos por autoridades, organizações ou pessoas designadas por lei para processar tais dados e regularmente auditadas ou sujeitas a procedimentos de controlo. Qualquer tipo de vigilância de crianças por meios digitais, bem como qualquer processamento automatizado de dados pessoais que lhe esteja associado, deve respeitar o direto das crianças à privacidade e não deve ser levado a cabo de forma rotineira, indiscriminada ou sem o conhecimento das crianças, devendo escolher-se sempre o meio menos intrusivo para atingir o objetivo pretendido.

O Comité destaca a importância do aproveitamento das tecnologias digitais para promover e proteger os direitos da criança no contexto da saúde, bem-estar, educação, lazer e atividades culturais, referindo que tais tecnologias deverão complementar ou melhorar a prestação de serviços presenciais. Os Estados Partes deverão assegurar-se de que pais e cuidadores dispõem de oportunidades para adquirir literacia digital, para aprender de que forma a tecnologia pode apoiar os direitos da criança e para reconhecer uma criança que seja vítima de um dano praticado online e responder de forma adequada, devendo ser prestada atenção especial aos pais e cuidadores de crianças em situações de desvantagem ou vulnerabilidade. O Comité destaca também a importância de garantir o acesso de todas as crianças a tecnologias digitais e de eliminar as barreiras enfrentadas, nomeadamente, pelas crianças separadas das suas famílias, crianças com deficiência, crianças em conflitos armados, migrantes e em outras situações de vulnerabilidade.

Os Estados Partes deverão promover a partilha de conhecimentos, recursos e boas práticas a nível internacional e regional, bem como fomentar as atividades de formação e regulamentação transfronteiriça, assim potenciando a realização dos direitos da criança em ambiente digital por todos os Estados. É encorajada a formulação de uma definição comum do que constitui um crime em ambiente digital, bem como de medidas de cooperação judiciária internacional, recolha e partilha de meios de prova.

Para a elaboração deste Comentário Geral, o Comité baseou-se, designadamente, na sua experiência na análise dos relatórios dos Estados Partes, no debate geral promovido sobre meios digitais e direitos da criança, na jurisprudência dos órgãos dos tratados de direitos humanos, em recomendações de entidades das Nações Unidas, em duas rondas de consultas com Estados, peritos e outras partes interessadas e numa consulta internacional efetuada a 709 crianças em situações muito díspares e de várias regiões do mundo.


Autor: Raquel Tavares

Fonte:  Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos